Julio Max Manske[i]

1.Introdução.

O objetivo do presente texto é expor as possibilidades que os contratantes possuem de, diante de uma obrigação contratual insustentável, obter a renegociação de seus compromissos, em razão de fatos que desequilibraram a situação das partes desde o momento da assinatura do contrato.

2.Das situações de mercado

Sem qualquer manifestação partidária, seja positiva ou negativa, a certeza é que durante longos anos, fomos condicionados a compreender que a economia nacional estava sob controle, afastada das mazelas das vizinhas Argentina e Venezuela, assim como da Norte Americana e Européia.

Fomos vistos como um país emergente, ao lado de gigantes como Rússia, China, Índia e recentemente, Africa do Sul, a ponto de em 2014, anunciar a criação de um banco próprio de fomento em desprezo ao já existente Banco Mundial[ii].

Incentivadas ao investimento na produção industrial, nos diversos setores da economia, empresas expandiram seus parques fabris, elevando o número de fabricantes de máquinas e equipamentos, trazendo em sua esteira, os mais diversos prestadores de serviço, pois embora revolucionada a produção industrial, a mão de obra ainda se faz presente como necessária ao comando e operacionalização do sistema produtivo, além de essencial para a função social de qualquer governo.

Assistimos, nos últimos anos, tanto a Presidente da República, quanto o então Ministro da Fazenda, afirmar que a inflação estava dentro da meta (4,5%, até o limite de 6,5% ano). E como palavras sem comprovação são apenas palavras, tal discurso é comprovado pelos índices econômicos apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que ao apurar o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor)[iii], onde desde o ano de 2010, o percentual apurado até o mês de julho de cada ano, não ultrapassou a casa dos 4%, chegando, até mesmo, a ficar abaixo dos 3% (2,9970 em julho de 2012).

Fomos presenteados, nos primeiros dias do ano de 2013, com a redução dos valores decorrentes da utilização de energia elétrica, em percentuais que variaram de 18% a 32%, de acordo com a concessionária[iv]. Além da contenção do aumento dos combustíveis em percentuais abaixo da própria inflação.

Estes foram alguns dos fatores positivos que serviram como pano de fundo para diversas contratações nesse período. Seja para expansão da atividade industrial, para ampliação da rede varejista, ou mesmo, em diversos outros setores correlatos (transporte, alimentação, prestação de serviços, etc.).

O tempo passou, a inflação estourou a meta (7,4217% acumulado em julho de 2015, correspondente a um aumento de 89% em 12 meses), a energia teve de ser recomposta, com aumentos superiores a 35%, o combustível também teve de ser reajustado e o efeito cascata foi quase imediato. Inflação, contenção, RECESSÃO!

Demissões em massa, fechamento de unidades produtivas por inteiro ou sua redução para o mínimo necessário para dar continuidade a atividade, cancelamentos de obras públicas em razão da ausência de repasse e, por consequência, redução, como um todo, do estoque de produtos e serviços ofertados e disponíveis.

A situação existente e conhecida de cada uma das partes no momento da contratação, portanto, tornou-se diversa por fatos alheios a vontade de cada um dos envolvidos, levando a buscar, na legislação nacional, a previsão para o reequilíbrio das partes e o cumprimento de suas obrigações.

3.Da Regulação dos Contratos

Embora milenar a existência da teoria da imprevisão (já prevista no Código de Hamurabi, 2700 a.C.), a sua aplicação na prática diária tem sido reduzidamente reconhecida e aplicada por nossos tribunais.

O princípio que o contrato faz lei entre as partes (salvo a revisão de suas ilegalidades), tem sido muito mais propalado que a revisão pelo desequilíbrio contratual decorrente de fatos supervenientes.

Em um passado recente, leia-se, 1999, quando o dólar disparou da casa dos R$ 2,00 para R$ 4,00, milhares foram as demandas que objetivaram recompor as cláusulas contratuais, inclusive apontando a nulidade da contratação em moeda estrangeira.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, selou a discussão ao afirmar que em um país de câmbio flutuante, o contratante em moeda estrangeira deve conhecer os riscos das oscilações e a flutuação do câmbio não pode ser invocado como um fato imprevisível.

Entretanto, ao enfrentar o tema, também consolidou a diferença entre a teoria da imprevisão, contida no Código Civil, para aquela trazida pelo Código de Defesa do Consumidor, como se observa:

CC –  Seção IV

Da Resolução por Onerosidade Excessiva

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

 

CDC – Art. 6º

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Em confronto das duas disposições legais, retira-se a seguinte diferença essencial:  nas relações de consumo, não há necessidade de demonstrar a imprevisibilidade  dos fatos supervenientes, mas sim, apenas demonstrar que estes tornaram as prestações excessivamente onerosas. Já nas relações que não se caracterizam como de consumo, além de ser necessário demonstrar a ocorrência de fatos supervenientes que tornam as prestações excessivamente onerosas, também é imprescindível que sejam extraordinários e imprevisíveis.

Nesse sentido, apresentam-se as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:

Direito do consumidor. Recurso especial. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Cessão de crédito com anuência do devedor. Prestações indexadas em moeda estrangeira (dólar americano). Crise cambial de janeiro de 1999. Onerosidade excessiva. Caracterização. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação.

– O preceito insculpido no inciso V do artigo 6º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor.

– A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas.

– A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a sociedade de fomento ao crédito estará assegurada quanto aos riscos da variação cambial.

– É ilegal a transferência de risco da atividade financeira ao consumidor, ainda mais quando não observado o seu direito à informação.[v]

 

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. DÓLAR AMERICANO. MAXIDESVALORIZAÇÃO DO REAL. AQUISIÇÃO DE EQUIPAMENTO PARA ATIVIDADE PROFISSIONAL. AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIAS DA IMPREVISÃO. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. TEORIA DA BASE OBJETIVA. INAPLICABILIDADE.

  1. Ação proposta com a finalidade de, após a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, modificar cláusula de contrato de compra e venda, com reserva de domínio, de equipamento médico (ultrassom), utilizado pelo autor no exercício da sua atividade profissional de médico, para que, afastada a indexação prevista, fosse observada a moeda nacional.
  2. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza, como destinatário final, produto ou serviço oriundo de um fornecedor. Por sua vez, destinatário final, segundo a teoria subjetiva ou finalista, adotada pela Segunda Seção desta Corte Superior, é aquele que ultima a atividade econômica, ou seja, que retira de circulação do mercado o bem ou o serviço para consumi-lo, suprindo uma necessidade ou satisfação própria, não havendo, portanto, a reutilização ou o reingresso dele no processo produtivo.

Logo, a relação de consumo (consumidor final) não pode ser confundida com relação de insumo (consumidor intermediário).

  1. A intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de e vento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometa o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica.
  2. O histórico inflacionário e as sucessivas modificações no padrão monetário experimentados pelo país desde longa data até julho de 1994, quando sobreveio o Plano Real, seguido de período de relativa estabilidade até a maxidesvalorização do real em face do dólar americano, ocorrida a partir de janeiro de 1999, não autorizam concluir pela imprevisibilidade desse fato nos contratos firmados com base na cotação da moeda norte-americana, em se tratando de relação contratual paritária.
  3. A teoria da base objetiva, que teria sido introduzida em nosso ordenamento pelo art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor – CDC, difere da teoria da imprevisão por prescindir da previsibilidade de fato que determine oneração excessiva de um dos contratantes. Tem por pressuposto a premissa de que a celebração de um contrato ocorre mediante consideração de determinadas circunstâncias, as quais, se modificadas no curso da relação contratual, determinam, por sua vez, consequências diversas daquelas inicialmente estabelecidas, com repercussão direta no equilíbrio das obrigações pactuadas. Nesse contexto, a intervenção judicial se daria nos casos em que o contrato fosse atingido por fatos que comprometessem as circunstâncias intrínsecas à formulação do vínculo contratual, ou seja, sua base objetiva.
  4. Em que pese sua relevante inovação, tal teoria, ao dispensar, em especial, o requisito de imprevisibilidade, foi acolhida em nosso ordenamento apenas para as relações de consumo, que demandam especial proteção. Não se admite a aplicação da teoria do diálogo das fontes para estender a todo direito das obrigações regra incidente apenas no microssistema do direito do consumidor, mormente com a finalidade de conferir amparo à revisão de contrato livremente pactuado com observância da cotação de moeda estrangeira.
  5. Recurso especial não provido[vi].

4.CONCLUSÃO

Pode-se concluir, portanto, que há previsão legal para rever os contratos, mesmo aqueles firmados com instituições financeiras, desde que demonstrada a ocorrência de fatos supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, que tornaram as prestações excessivamente onerosas.

Destaca-se, ainda, que tratando-se de contratos firmados sob a proteção do Código de Defesa do Consumidor, tornam-se dispensáveis os requisitos da imprevisibilidade e extraordinariedade, bastando demonstrar a onerosidade excessiva das prestações, pela ocorrência de fatos supervenientes.

Caberá demonstrar, portanto, com o objetivo de pleitear a revisão do contrato e a adequação de suas cláusulas, que a situação econômica nacional, constitui fato superveniente, desde que relacionado a situações fáticas e concretas junto a quem busca a revisão, tais como o fechamento de unidades produtivas pelo rompimento de contratos com o governo, ainda que de forma indireta; a brusca redução de vendas, ocasionado pela redução de oferta de crédito; etc.

[i]  Graduado em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (1998); Especialização em Direito Penal Econômico Internacional pela Universidade de Coimbra (Portugal) em convênio com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim (2007); Especialização em Corrupção, Crime Organizado e Terrorismo pela Universidade de Salamanca (Espanha 2011); Especializando em Gestão de Comércio Exterior e Negócios Internacionais pela FGV (2015); Sócio da Piazera Hertel Manske & Pacher Advogados, Coordenador do Departamento de Direito Comercial e Penal Econômico (2005).

[ii] http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/

[iii] O Sistema Nacional de Preços ao Consumidor – SNIPC efetua a produção contínua e sistemática de índices de preços ao consumidor tendo como unidade de coleta estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, concessionária de serviços públicos e domicílios (para levantamento de aluguel e condomínio). A população-objetivo do INPC abrange as famílias com rendimentos mensais compreendidos entre 1 (hum) e 5 (cinco) salários-mínimos (aproximadamente 50% das famílias brasileiras), cujo chefe é assalariado em sua ocupação principal e residente nas áreas urbanas das regiões, qualquer que seja a fonte de rendimentos, e demais residentes nas áreas urbanas das regiões metropolitanas abrangidas. Abrangência geográfica: Regiões metropolitanas de Belém, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, Brasília e município de Goiânia. Calculado pelo IBGE entre os dias 1º e 30 de cada mês, compõe-se do cruzamento de dois parâmetros: a pesquisa de preços nas onze regiões de maior produção econômica, cruzada com a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) in http://www.portalbrasil.net/inpc.htm

[iv] http://www.aneel.gov.br/aplicacoes/noticias/Output_Noticias.cfm?Identidade=6426&id_area=90

 

[v] (REsp 417.927/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/05/2002, DJ 01/07/2002, p. 339)

[vi] (REsp 1321614/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/03/2015)

 

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