Bruna Motta Piazera[[1]]

RESUMO

Com o intuito de analisar as principais mudanças estabelecidas pela aprovação do projeto de lei que dispõe sobre a vida pregressa dos candidatos aos cargos eleitorais (popularmente conhecida como Projeto Ficha Limpa, oficialmente intitulada Lei Complementar 135//2010), este artigo classifica tal fato como um avanço do sistema eleitoral e da legislação vigente no Brasil. Com princípios fortemente moralizantes, este projeto que surgiu por iniciativa popular, reflete bem a vontade da sociedade em construir um país mais justo. Como lentes de estudo, utilizam-se as doutrinas de Introdução ao Estudo do Direito, tendo como foco as fontes do Direito, e a valoração de princípios morais, bem como a aplicação da Teoria Tridimensional do Direito[[2]].

Palavras-chave: Ficha Limpa; Lei Complementar 135/2010; Teoria Tridimensional do Direito; Moralização.

 

I. INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

Como ponto de partida, é preciso que se verifique o contexto em que se coloca o Ficha Limpa no cenário político  e como evoluiu o tratamento legal e constitucional da questão das (in)elegibilidades no Brasil. Uma série de escândalos, na vida pública brasileira, envolvendo desvios de verbas e compras de votos, provocaram (e ainda provocam) grande discussão na sociedade, tendo como foco a preocupação sobre como reduzir a corrupção e a impunidade no país.

A Lei da Inelegibilidade vigente anteriormente (Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990) mostrou-se omissa a dispor de meios para ?filtrar? aqueles que se dispunham a disputar o voto popular. Desta forma, procurou-se adotar mecanismos que impedissem o acesso a cargos eletivos de pessoas condenadas por algum crime.

A Campanha Ficha Limpa foi, portanto, lançada oficialmente em abril de 2008 com o objetivo de melhorar o perfil dos candidatos e candidatas a cargos eleitorais do país. Para tal, foi elaborado um Projeto de Lei de iniciativa popular sobre a vida pregressa dos candidatos que pretendia tornar mais rígidos os critérios de inelegibilidades.

O Projeto de Lei pretendia impedir a candidatura de políticos condenados por crimes graves, defendendo que haja uma condenação criminal por improbidade administrativa, e estes tornem-se, portanto, inelegíveis, como pode ser bem observado pela redação dada pelo site do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) ? órgão não governamental que liderou o projeto -, na seção Campanha Ficha Limpa:

?Pessoas condenadas em primeira ou única instância ou com denúncia recebida por um tribunal ? no caso de políticos com foro privilegiado ? em virtude de crimes graves como: racismo, homicídio, estupro, tráfico de drogas e desvio de verbas públicas. Essas pessoas devem ser preventivamente afastadas das eleições ate que resolvam seus problemas com a Justiça Criminal;

Parlamentares que renunciaram ao cargo para evitar abertura de processo por quebra de decoro ou por desrespeito à Constituição e fugir de possíveis punições;

Pessoas condenadas em representações por compra de votos ou uso eleitoral da máquina administrativa? (grifos meus).

Passados alguns meses, a campanha expandiu-se pelo território nacional, atingindo todos os 26 (vinte e seis) estados e o Distrito Federal (DF). A idéia foi facilmente ?abraçada? pela população, tendo sido inclusive, apoiada por outras 43 entidades aliadas ao MCCE.

Então, no dia 29 de setembro de 2009, o Movimento protocolou, junto ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer,  o Projeto de Lei de iniciativa popular nº 518/2009, junto com 1 milhão e 300 mil assinaturas o que correspondia à participação de  1% do eleitorado brasileiro.

Transcorrido agora o processo de análise pelo legislativo, foi aprovada a Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010 ? Lei da Ficha Limpa -, que entrou em vigor na data de sua publicação (07/06/2010), tendo como ementa:

?Altera a Lei Complementar n° 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9° do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato? [[3]].

Apesar de terem surgido alguns impasses quanto a vigência da lei previamente citada, principalmente em se tratando da abrangência e retroatividade das ações, ou seja, se a lei vale para processos em tramitação e os já julgados, de acordo com a nova lei, ficam inelegíveis por oito anos, além do período remanescente do mandato, aqueles que cometeram lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

Tal regra ficou estabelecida a partir da aprovação da sua aplicabilidade instituída, no último dia 17 de junho, pela maioria dos ministros. O relator da consulta, ministro Arnaldo Versiani, baseou seu voto pela retroatividade da lei considerando que a elegibilidade não é um direito adquirido:

?Sim, a lei se aplica aos processos iniciados e mesmo já encerrados. Não há direito adquirido de elegibilidade, sendo aferidas a cada eleição, que deve ocorrer na data do pedido de candidatura? [[4]].

Percebe-se, desta forma, que a mobilização para a efetiva ação da lei atinge todos os níveis da sociedade, sendo portanto, reflexo do anseio coletivo existente: acabar com a corrupção e impunidade dos políticos do país.

II. TEORIA E DOGMÁTICA JURÍDICA CORRESPONDENTES

Oriundo de um fato social, o Projeto Ficha Limpa reflete a tentativa de valoração moral do sistema eleitoral brasileiro. Mesmo a participação popular não sendo uma característica constante em nossa sociedade, é preciso considerar que tal atitude vem, cada vez mais, ganhando força. Como mencionado alhures, o projeto de lei foi entregue, inicialmente, com 1 milhão e 300 mil assinaturas. No entanto, no dia 04 de junho de 2010, esse número já tinha superado a casa dos 2 milhões de apoiadores[[5]].

Desta forma, percebe-se que mesmo não tendo tradição e costume de participar ativamente do sistema democrático em que estamos inseridos pela forma de governo, a atitude do cidadão deste país vem se transformando, visto que a ideologia de ?comece por você mesmo?, passa a ser praticada pelas pessoas.

Somado a isso, relacionam-se os acontecimentos sociais com a dogmática jurídica apresentada no estudo introdutório do Direito. Como bem ensina Paulo Nader (2002, p.49), o Direito não é uma concepção metafísica de normas jurídicas, mas ?(…) compõe-se de modelos, que se referem a fatos, aos acontecimentos sociais. São as relações de vida que indicam ao legislador as questões sociais que devem ser regulamentadas?. E ele ainda complementa:

?As leis refletem, a um só tempo, valores permanentes de convivência (…).

A formação e a evolução do Direito não resultam da simples vontade do legislador, mas estão subordinadas à realidade social subjacente, à presença de determinados fatores que influenciam fortemente à própria sociedade, definindo as suas diversas estruturas.

Para ser instrumento eficaz ao bem-estar e progresso social, o Direito deve estar sempre adequado à realidade, refletindo as instituições e a vontade coletiva? (grifos meus).

Ou seja, o fato social, tanto aqui caracterizado pelo problema inicial da situação legal/moral dos candidatos a cargos eleitorais, tanto como pela iniciativa popular de apresentar uma solução a esse caso, reflete a acepção social de tal realidade, uma valoração a ela aplicada e sua tentativa de solução do caso (pela criação de uma norma jurídica).

Essa análise nos permite referenciar os estudos do nobre professor Miguel Reale (2002, p. 65), e principalmente, sua Teoria Tridimensional do Direito, tal como transcrito a seguir:

  1. Onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (…); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;
  2. Tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem em uma unidade concreta;
  3. Mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo de tal modo que a vida do Direito resulta da integração dinâmica e dialética dos três elementos que a integram (grifos meus).

Além dessa doutrina, a valoração da moral ? oriunda dos princípios éticos ? deve ser fortemente considerada, uma vez que busca refletir na população, padrões harmônicos fundamentais à vida em sociedade. A inconformidade com a corrupção e a impunidade fortemente presentes em nosso país, levaram os cidadãos a organizarem-se de forma a procurar por uma alternativa que solucionasse o problema.

?A ética, a moral e o Direito estão interligados?, como bem define José Roberto Goldin[[6]]. Segundo ele, a ética consiste num conjunto de princípios morais. Já a moral consiste em conjunto de regras, que atuam internamente, ou seja, tem um alto valor dentro das pessoas. Ao passo que o Direito é aquilo que é justo perante a lei e a justiça. E ele ainda completa, ensinando:

?Tanto a Moral como o Direito baseiam-se em regras que visam estabelecer uma certa previsibilidade para as ações humanas. Ambas, porém, se diferenciam.

A moral e o direito tem a seguinte base: a moral tem efeito dentro da pessoa, ela atua como um valor, aquilo que se aprendeu como certo e o direito tem uma relação com a sociedade, o direito é aquilo que a pessoa pode exigir perante seus semelhantes, desde que esteja de acordo com a lei, aquilo imposto pela sociedade? (grifos meus).

A Lei da Fica Limpa figura como um exemplo claro dessas relações. Neste caso, a lei recentemente sancionada representa veemente o Direito, que valorado criticamente pela população (utilizando de princípios éticos e morais), foi oriundo de um fato social.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

São inquestionáveis as relações existentes entre o projeto de lei aprovado e o Direito Positivo no qual baseia-se a realidade jurídica brasileira. É importante destacar que este, diferentemente de todos os outros fatos sociais que resulta na norma, foi resultado direto da mobilização social.

Apesar de todos os empecilhos ?encontrados no caminho? – número mínimo de assinaturas de eleitores ao projeto, e a simples demora para tramitação do assunto no legislativo, por exemplo -, deve-se considerar tal fonte de norma jurídica uma reivindicação direta da sociedade, conquistada por seus próprios méritos. Até por que, sabe-se que mesmo os políticos e governantes tendo a função de governar em nome do povo, muitas vezes não é isso que acontece. Ainda mais se tratando de tema tão diretamente relacionado a eles.

Desta forma, analisam-se essas relações como processos de adaptação humana; pré-requisitos ao estabelecimento do progresso social, ordem e bem comum. ?O Direito é um organismo responsável pela instrumentalização e regência desses valores?, como bem pontua Paulo Nader (2002, p.17). Ele ainda acrescenta que:

?O Direito não corresponde às necessidades individuais, mas a uma carência da coletividade. A sua existência exige uma equação social (…).

Para o homem e para a sociedade, o Direito não constitui um fim, apenas um meio para tornar possível a convivência e o progresso social. Apesar um substrato axiológico permanente, que reflete a estabilidade da ?natureza humana?, o Direito é um engenho á mercê da sociedade e deve ter a sua direção de acordo com os rumos sociais.

(…) A necessidade de ordem, paz, segurança, justiça, que o Direito visa a atender, exige procedimentos sempre novos. Se o Direito se envelhece, deixa de ser um processo de adaptação, pois passa a não exercer a função para qual foi criado. (…) Os processos de adaptação devem-se renovar, pois somente assim o Direito será um instrumento eficaz na garantia do equilíbrio e da harmonia social.

Por fim, é imprescindível que leis de caráter moralizante, oriundas da iniciativa popular, tal como a Lei da Ficha Limpa, sejam cada vez mais apoiadas e aprovadas para vigorar na sociedade. Principalmente tratando-se de temas cruciais na política do país, visto que corrupção e impunidade são desvios sociais que devem e podem ser, ao menos, minimizados. É tudo uma questão de princípios e métodos de combate aplicados a eles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 26 ed. São Paulo: ed. Saraiva, 2002.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 22 ed. Rio de Janeiro: ed. Forense, 2002.

CRISPIM, Luiz Augusto. Estudos Preliminares de Direitos. São Paulo: ed. Saraiva, 1997.

GOLDIM, José Roberto. Ética, Moral e Direito. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2010.

Campanha ficha limpa contra a candidatura de político em débito com a justiça. Disponível em: . Acesso em 17 jun. 2010.

Para acabar com a corrupção. Disponível em: . Acesso em 17 jun. 2010.

A nova iniciativa popular do MCCE. Disponível em: . Acesso em: 17 jun. 2010.



[1] Estudante da 1ª fase de Direito da UNERJ e estagiária do Piazera, Hertel, Manske & Pacher Advogados Associados.

[[2]] De autoria do Professor Miguel Reale.

[3] Texto extraído da redação da Lei da Ficha Limpa, disponível em: http://www2.camara.gov.br

/legin/fed/leicom/2010/leicomplementar-135-4-junho-2010-606575-norma-pl.html. Acesso em 18 jun. 2010.

[[4]] Fala extraída de entrevista concedida pelo Ministro Arnaldo Versiani. Disponível em: http:/ /eleicoes.uol.com.br/2010/ultimas-noticias/2010/06/17/maioria-do-tse-decide-que-ficha-limpa-tambem-barra-candidatos-condenados-antes-da-lei.htm. Acesso em 18 jun. 2010.

[[5]] Conforme observa-se pelo contador online de assinaturas, atualizado em tempo real; disponível em: http://www.avaaz.org/po/brasil_ficha_limpa/. Acesso em 18 jun. 2010.

[[6]] Autor do texto explicativo sobre Ética, Moral e Direito, disponível em: http://www.ufrgs.br/bio etica/eticmor.htm. Acesso em 18 jun. 2010.

CategoryArtigos
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