ALVARINO KÜNEL NETO[1]

Palavras chave: Aborto. Anencéfalo. Princípios. Dignidade da Pessoa Humana.

1.

Introdução

O presente artigo abordará a questão da possibilidade de interrupção da gravidez de risco para a gestante frente aos princípios e normas constitucionais, notadamente quando se tratar de feto anencéfalo.

2.

Ab initio, é de bom alvitre esclarecer que o correto, em termos semânticos, é o emprego da expressão ?abortamento?, entendida como o ato em si, enquanto o vocábulo ?aborto? se traduz no feto já retirado e sem vida, ou seja, o produto do abortamento.

Traz-se à baila, agora, o conceito proposto por Maria Helena Diniz, segundo o qual o anencéfalo “pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). Como os centros de respiração e circulação sangüínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o anencéfalo poderá nascer com vida, vindo a falecer horas, dias ou semanas depois”.[2]

A Constituição da República Federativa do Brasil previu um sistema que se dispõe à proteção dos Direitos Humanos. Dita, igualmente, ser um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana, que constitui, em verdade, o suporte de todos os direitos humanos consagrados. Desta forma, toda e qualquer interpretação que se fizer a respeito de garantias deve ter sempre em mente o que vem a ser dignidade do ser humano, embasamento maior da República e razão de sua existência política.

Sobre o tema Carmem Lúcia Antunes Rocha preconiza:

Contra todas as formas de desumano tratamento, em detrimento do princípio da dignidade da pessoa humana, pela inclusão no direito e pelo direito de todos os homens, é que o milênio que se aproxima volta-se ao humanismo ético procurando a realização do ser humano integral, aquele que integra o homem ao todo e propõe a crença no homem, certo de que o homem supera-se sempre e em todos os sentidos. A dignidade da pessoa humana é a prova de que o homem é um ser de razão compelido ao outro pelo sentimento, o de fraternidade, o qual, se às vezes se ensaia solapar pelo interesse de um ou outro ganho, nem por isso destrói a certeza de que o centro de tudo ainda é a esperança de que a transcendência do homem faz-se no coração do outro, nunca na inteligência aprisionada no vislumbre do próprio espelho. Afinal, mesmo de ouro que seja o espelho, só cabe a imagem isolada. Já no coração, ah!, coração, cabe tudo.?[3]

Enfocando de um lado a realização de abortamento à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 5º, III, da CF/88), especificamente entendido como a manutenção da higidez física e psicológica da genitora, face a inexorável realidade de saber que seu filho não gozará de vida extra-uterina. De outro norte, tem-se o direito à vida do nascituro, também resguardado pela Magna Carta, ainda que cientificamente demonstrada a sua inviabilidade. Esse embate de valores força uma ponderação, observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

A respeito:

(…) o cerne da questão é justamente saber qual é o ponto de equilíbrio entre estes dois direitos em aparente tensão. Deve prevalecer o direito do feto acéfalo de viver, ainda que somente de forma intra-uterina ou por alguns instantes após o parto, mas sem perspectiva de desfrutar efetivamente da vida extra-uterina, porquanto desprovida de massa encefálica e, pois, de consciência, inconsciência e de todos os sentidos que, ao que tudo indica, dão razão à vida? Ou, de outra parte, deve prevalecer o direito à dignidade da mãe, que sabe por comprovação médico-científica que o ser que gera não poderá viver fora de seu ventre, de modo que deve ser colocada à salvo da dor e sofrimento que o prolongamento do processo de gestação lhe causará? Neste embate entre VIDA X DIGNIDADE, direitos igualmente fundamentais do homem, qual deve preponderar sobre o outro?

Em princípio, a tendência é de se afirmar que a vida deve sempre prevalecer, porquanto sem vida não há falar-se em sociedade, ou mesmo em Direito de espécie alguma. A vida seria, pois, o maior dos bens humanos. Todavia, não parece razoável impor à uma mãe que tenha sua dor e seu sofrimento prolongados por meses até o dia do parto, como se de antemão tivesse sido condenada pela natureza simplesmente por ter um dia buscado contribuir para com ela. Soa irracional à compreensão humana e, pois, à razão do homem médio conceber-se entendimento contrário, que proíba a antecipação terapêutica do parto para privar de mais sofrimentos a genitora que vê, a cada dia que passa, seu ventre crescer e gestar um ser que sequer chegará, de fato, experimentar a vida como ela é, e morrerá, deixando ainda mais angústia, dor e lágrimas no coração de uma mãe já certamente inconsolável.

Torna-se ainda mais irracional tal proibição no caso, em se considerando que a legislação brasileira sempre admitiu o aborto quando a gravidez resulta de estupro (art. 128, II Código Penal). Ora, se no conflito entre a liberdade (liberdade sexual da mulher) e a vida (do feto), aquele bem sempre prevaleceu ? com o que, diga-se, estamos perfeitamente de acordo porquanto nada justifica a violência sexual e o trauma psicológico que dela resulta para a mulher ? por que razão no conflito entre a sua dignidade (de pessoa humana) e a vida (do feto anencefálico desprovido de potencialidade de vida extra-uterina), esta deva preponderar. Admitir-se uma tal situação seria contemplar a desigualdade, estabelecendo-se dois pesos e duas medidas, e malferir os mais singelos princípios da razão e do Direito.[4] [negritei]

Registre-se que o Código Penal Brasileiro de 1940 criminaliza, nos arts. 124 e seguintes, a conduta de provocar ou praticar o aborto[5]. Traz igualmente, como exceções, as hipóteses do art. 128 do mesmo diploma, ao estatuir ser ele possível quando ?se não há outro meio de salvar a vida da gestante? ou ?se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.?

Nessa conformidade, as duas hipóteses especificadas excluem a aplicação da Lei Penal. Todavia, não se pode olvidar que a realidade existente no momento da edição da lei não contemplava e nem poderia contemplar situações diversas que à época não eram possíveis. Deixou a latere, por conseguinte, os eventuais avanços científicos que poderiam advir.

Aliás, é dever do julgador estar em sintonia com a atualidade, e não decidir somente tomando por base a letra da lei, esmagada dentre as tantas páginas existentes nos compêndios normativos, uma vez que aquela muitas vezes se mostra insuficiente.

Leciona Leon Frejda Szklarowsky:

Não se alegue que o Direito pátrio é omisso, porque, como ensina a preclara Desembargadora do Tribunal de Justiça gaúcho, Maria Berenice Dias, ?como a plenitude do sistema estatal não convive com vazios, para a concreção do direito, o juiz precisa ter os olhos voltados à realidade social. Mister deixem de fazer suas togas de escudos para não enxergar a realidade, pois os que buscam a Justiça merecem ser julgados e não punidos?.

(…)

A Constituição, realmente, exige a preservação e a tutela da vida, todavia, acrescenta, ?com dignidade?. Exigir que uma mãe carregue em seu ventre um ente, sem qualquer chance de sobrevida, como é o caso presente, é não só matá-la psiquicamente como constrangê-la ao sofrimento dramático que ninguém tem o direito de impor-lhe, como aliás ponderou o Tribunal Maior do País, servindo de modelo para os casos futuros. O sacrifício desta pobre mulher poderá ser o anteparo para outros casos, visto que o direito deve andar de mãos dadas com a realidade, sob pena de fenecer solitário.[6]

A doutrina penal moderna, inclusive, tem admitido a exclusão de culpabilidade da gestante que pratica o abortamento em casos como de anencefalia fetal, fato que, diante das considerações retro, é prova inconteste da atualização constante do Direito, colmatando as lacunas ainda existentes no ordenamento jurídico pátrio.

Ensina Fernando Capez:

Tecnicamente considerado, o aborto eugenésico dirá com a exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, tanto por parte da gestante, considerando o dano psicológico a ela causado, em razão de uma gravidez cujo feto sabidamente não sobreviverá, como por parte do médico, que não pode ser compelido a prolongar o sofrimento da mulher. (Curso de Direito Penal – Parte Especial. Vol. 2. 5ª ed. Saraiva: 2005)

Cumpre analisar, nesse enfoque, a plena possibilidade de diagnóstico seguro da formação fetal e sobrevivência extra-uterina do feto; isto é, se realmente é dado às ciências médicas diagnosticar com efetiva certeza não só a existência de diversas moléstias biológicas que tornam o feto incapaz de vida extra-uterina, causando, desde a descoberta, patologias psicológicas das mais diversas na gestante, como problemas que possam vir a ser sanados ainda no contexto do período gestacional.

Observada a constatação de que o feto é inviável para a vida extra-uterina, é de se indagar sobre a possibilidade de autorização judicial do aborto.

A resposta, afastadas as questões éticas, religiosas ou sociais, mas tendo em conta unicamente a questão relacionada à vida e suas perspectivas, apresenta-se positiva. Não se observa a exigência legal de se impor a alguém que leve a gestação a termo, vez que o feto não poderá sobreviver sem a presença biológica da geratriz. Aqui ingressa a violência psicológica a ser imposta à gestante durante todo o período gestacional, sabendo-se de antemão o malogro de todo o esforço havido.

É triste chegar-se à esta conclusão, pois que interromper-se-á uma vida que ainda existe, mesmo que sem perspectiva. Mas deve-se abstrair o pensamento de questões ideológicas próprias, pois neste caso, somente à mãe ? e ao pai ? competirá decidir sobre a questão.

A respeito, colhe-se da jurisprudência do TJSC:

ABORTO ?  AUTORIZAÇÃO JUDICIAL ? ANENCEFALIA FETAL ? COMPROVADA INVIABILIZAÇÃO DA VIDA EXTRA-UTERINA ? PEDIDO INSTRUÍDO COM LAUDO MÉDICO IRREFUTÁVEL DA ANOMALIA E DE SUAS CONSEQÜÊNCIAS E COM FAVORÁVEL PARECER PSICOLÓGICO DO CASAL ? CONSENTIMENTO EXPRESSO DO PAI ? EVIDÊNCIA DE RISCO À SAÚDE, ESPECIALMENTE MENTAL, DA GESTANTE ? INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA EXCLUDENTE DE PUNIBILIDADE PREVISTA NO INCISO I DO ART. 128 DO CP ? APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ANALOGIA ADMITIDOS NO ART. 3º DO CPP ? AUTORIZAÇÃO CONCEDIDA ? APELO PROVIDO.

Diante da solicitação de autorização para realização de aborto, instruída com laudo médico e psicológico favoráveis, deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro, e evidenciado o risco à saúde desta, mormente a psicológica, resultante do drama emocional a que estará submetida caso leve a termo a gestação, pois comprovado cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina, outra solução não resta senão autorizar a requerente a interromper a gravidez.[7]

Nesse passo, é de se concluir que não se pode ser negada à mãe a autorização judicial para o abortamento do feto anencéfalo, eis que impedir a realização do procedimento e prolongar uma gestação inviável, do ponto de vista científico, é ferir de morte o princípio da dignidade da pessoa humana.

3.

Conclusão

Como se viu, a Lei Penal prevê duas possibilidades de se por fim à gestação, sendo as duas verificadas exclusivamente com vista à proteção da saúde física (em caso de perigo de vida à gestante) e mental (em caso de estupro) da mulher.

É por tais razões que não se pode negar o abortamento do feto anencéfalo com fundamento único do direito à vida, devendo ser estudada com enfoque e entrechoque dos demais princípios constitucionais.

E, se as possibilidades de interrupção legal da gravidez visam proteger a gestante, evidente que o fim da gestação de feto anencéfalo deve ter em mira a dignidade da pessoa humana (ora mãe), sobrepondo-se às demais garantias constitucionais.

Por tais razões, a autorização, e futuramente a exclusão de ilicitude, para abortamento no caso de feto anencéfalo é medida que se coaduna com os preceitos constitucionais.


[1] Acadêmico da 8ª fase do curso de Direito do Centro Universitário de Jaraguá do Sul ? Unerj. Estagiário no Escritório de Advocacia Piazera, Hertel, Manske & Pacher Advogados Associados, inscrito na OAB/SC sob nº 1.029.

[2] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva. 2001. P. 281

[3] ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. ?O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social? in Interesse Público, vol. 4, São Paulo, 1999, pág. 47.

[4] TAGLIAFERRO, Kleber. Aborto ou terapêutica? Vida e dignidade: um conflito de direitos humanos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5476>. Acesso em: 06 out. 2006.

[5] Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque. Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante.

[6] SZKLAROWSKY, Leon Frejda. O aborto de feto com anencefalia . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 556, 14 jan. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6123>. Acesso em: 04 out. 2006.

[7] Apelação criminal 98.003566-0, comarca de Videira, Rel. Des. Jorge Mussi, Segunda Câmara Criminal do TJSC, julgado em 05 de maio de 1998.

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