A Lei 13.869, de 05/09/2019i, ainda nem entrou em vigor, e já dominou espaço relevante no noticiário nacional, seja pelo elevado número de vetos impostos pelo executivo, parte deles, posteriormente derrubados pelo legislativo, seja pelo entendimento que tal legislação foi uma contrapartida do Congresso, ao conjunto de medidas denominadas “pacote anticrime” do atual Ministro da Justiça, Sergio Moro.

No entanto, foram os juízes de primeira instância que, efetivamente, demonstraram os efeitos que a nova legislação pode trazer quando entrar em vigor, uma vez que, mesmo ainda não vigente, já vem embasando decisões fundamentadas em suas medidas restritivas. E, para quem pensava que os reflexos da legislação somente seriam vistas nas esferas penais, surpreendeu-se com as recentes decisões de juízes com atuação em áreas cíveis e bancárias, que deixaram de realizar os procedimentos de penhora de dinheiro pelo sistema “BACENJUD”, em razão das suas deficiências, tais como penhoras em excesso e demora no seu desbloqueioii iii.

É bem verdade que, na esfera penal, a Lei também provocou repercussões, tanto que no Pernambuco, foram soltos 12 acusados por tráfico de drogas e armas, por entender, a magistrada, que não haviam motivos suficientes para manutenção da prisão e que sua ausência poderia configurar abuso de autoridade, conforme novo texto legaliv.

Por outro lado, no Estado de São Paulo, já ocorreu de advogado citar os dispositivos da lei para fundamentar seus pedidos e o magistrado contra-atacar, dizendo que seu desconhecimento a respeito de conceitos técnicos como “vigência” demonstram falta de conhecimento apto a ensejar um processo administrativo perante o Tribunal de Ética e Disciplina da OABv.

Como se observa, se antes mesmo de sua vigência a lei já serviu de elemento de disputa no legislativo, executivo e, até mesmo no judiciário, o estudo, debate e conhecimento dessa legislação mostra-se, não apenas importante, mas essencial para o exercício e defesa de direitos e obrigações.

Prevista para entrar em vigor em 05/01/2020, a Lei 13.869/19, inicia explicitando que define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído, assim como, já descreve que as condutas descritas nesta Lei, constituem crime de abuso de autoridade, quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

Para os conhecedores dos fundamentos do direito penal, é possível identificar que os crimes definidos na lei, exigirão a demonstração do dolo, ou seja, da intenção do agente público em QUERER prejudicar alguém, no caso, a vítima do abuso.

Embora sejam os juízes, aqueles que mais vem demonstrando os efeitos que o receio da aplicação da Lei poderá causar, é importante destacar que não apenas os membros do judiciário, mas também do legislativo, executivo, membros do ministério público, militares, servidores públicos federais, estaduais e municipais, mesmo aqueles que exercem, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pela Lei, estarão sujeitos aos seus efeitos.

A ação penal, por seu turno, que é a forma como tem início o processo criminal por crimes de abuso de autoridade, assim como na grande maioria dos crimes, é pública incondicionada, ou seja, é o ministério público quem tem a legitimidade para apresentar a denúncia e não depende do consentimento da vítima para iniciar o procedimento criminal (que igualmente, exige a condução por um magistrado). No caso de inércia do ministério público, no entanto, a exemplo dos demais casos, a vítima poderá substituí-lo, apresentando uma queixa crime (que possui os mesmos requisitos da denúncia), desde que o faça em até 6 meses após esgotado o prazo daquele (MP).

Com relação as penas, bem se sabe que as condenações até 4 anos de reclusão, comportam sua substituição por medidas restritivas e, quando superiores a 1 ano, obrigatoriamente devem ser substituídas por duas medidas restritivas. Nesse sentido, para os crimes previstos nessa lei, são previstas apenas duas medidas restritivas, quais sejam, a prestação de serviços comunitários e a suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens. Observa-se, assim, que o afastamento, ainda que pelo período mínimo, sem os vencimentos, mostra-se pena bastante severa e que, seguramente, servirá de prevenção a prática dos delitos.

Outro ponto relevante, é que a responsabilidades civil e administrativa são independentes da criminal, mas não se poderá mais questionar sobre a existência ou a autoria do fato quando essas questões tenham sido decididas no juízo criminal. Porém, da mesma forma, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, fará coisa julgado na nos processos em andamento na esfera cível, assim como no administrativo-disciplinar, Aqui, principalmente nas duas últimas hipóteses (estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito), é que, acredita-se, consistirão as defesas das autoridades.

Tratando diretamente de alguns dos crimes previstos na nova lei (porque a apreciação de todos tornaria o texto por demais extenso), destacam-se os seguintes:

Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

A condução coercitiva, embora praticada corriqueiramente até sua vedação por orientação do Supremo Tribunal Federal, ficou famosa em todo o cenário nacional, no caso do deferimento da medida em desfavor do ex-Presidente Lula, principalmente porque, não havia risco de fuga (ao menos não foi apresentado esse argumento na decisão) e, também, não houvera nenhuma negativa em qualquer intimação anterior de comparecimento para depor.

A menção, aqui, não tem qualquer conotação política ou demonstração de preferência de lado ou ideologia, mas sim, para demonstrar que assim como naquele caso, em diversos outros os “conduzidos” seguiam para seus depoimentos cautelares sem qualquer justificativa que exigisse o referido procedimento, senão a pressão que a situação e o momento impõe, notadamente quando acompanhado pela mídia, que previamente é comunicada do fato.

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a: I – exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública; II – submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

O papel do Estado, representado por seus agentes, é de punir os infratores da lei, nos limites das sanções previstas para o crime praticado. A espetacularização das prisões e a conduta de certos agentes em “dominar” os noticiários, tomando para si a titularidade de operações e apresentando o preso como um troféu, não coaduna com os princípios de atuação do Estado na prevenção e repressão ao crime. Como exemplo da conduta prevista nesse dispositivo, traz-se o conhecido caso da prisão do traficante Rogério 157, onde os policiais que atuaram em sua prisão, fizeram diversas “selfies” com o presovi.

Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.

Os termos “criminoso” e “marginal” são aplicados àqueles que cometem crime, pouco importando se grave, médio ou leve, assim como àqueles que vivem à margem da lei, ou seja, assim como as marginais das rodovias, os criminosos são aqueles que atuam à margem da lei, desviando de sua aplicação e respeito. A lei é criada para organizar a vida em sociedade, inclusive a própria criação da lei, é prevista em lei. Assim, o criminoso é aquele que não respeita, que não segue, que descumpre as normas previstas para a vida em sociedade. Dos agentes públicos, principalmente daqueles que atuam no combate à criminalidade, assim como na aplicação da lei, espera-se retidão, exemplo e obediência no cumprimento das normas.

Por isso, quando nos deparamos com notícias voltadas a utilização, por agentes públicos, de provas ilegais ou de procedimentos contrários ao previsto na lei, seja no procedimento investigatório, seja na condução de um processo, tanto penal como cível, não podemos nos confortar de que os meios justificam os fins. A partir do momento que autorizamos, ainda que por omissão ou tolerância, que os agentes públicos violem as normas legalmente estabelecidas, estamos aceitando que criminosos cacem criminosos.

A exemplo do exposto, citam-se as recentes notícias que envolvem a operação “lava jato” e a divulgação de mensagens que demonstram a atuação irregular do magistrado que “conduzia” a operação e dos procuradores que atuam na mesma, inclusive com o reconhecimento e ciência da utilização de provas e procedimentos ilegais. Em sua defesa, apontam a ilegalidade da captura das mensagens. Ora, é verdade que aqueles que violaram a comunicação dos agentes públicos praticaram crime e devem ser punidos nas sanções previstas para tanto, mas o conteúdo das mensagens, demonstram que os agentes igualmente agiram à margem da lei, agiram contrariamente ao previsto nas normas legalmente previstas e, portanto, são igualmente criminosos e marginaisvii. Os agentes públicos devem, no combate à ilegalidade, agir dentro dos limites legais, pois é isso que os diferencia daqueles que perseguem.

Art. 28. Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Não há dúvidas que a interceptação das comunicações é a melhor e a mais terrível das provas que, legalmente, podem ser obtidas e utilizadas na demonstração da ocorrência de um crime. A melhor porque se comprova o efetivo envolvimento do criminoso, seja na preparação, na atuação ou mesmo nas ações de destruição de outras provas. A pior, porque invade o íntimo da nossa privacidade e retira afirmações ou opiniões nem sempre conectadas ou que se gostariam viessem a público. Nem todas as investigações levam a identificação de criminosos e a devassa nas comunicações telefônicas ou mensagens, quando não vinculadas a nenhum crime, devem ser ignoradas por seus investigadores.

Um dos casos mais emblemáticos na divulgação de gravações telefônicas, ocorreu novamente com o ex-Presidente Lula, onde o atual Ministro da Justiça, então magistrado na 13ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba, levantou o sigilo de todas as suas gravações telefônicas, inclusive aquelas mantida com familiares e amigos e mesmo aquelas que não tinham nenhuma conotação ou vinculação com qualquer tipo penalviii. A interceptação telefônica possui procedimento legal, seja para sua captação, seja para sua utilização, que se resume a produzir prova em processo penal ou cível. Assim, tanto a captação, como a utilização de forma diversa daquela legalmente prevista, importa igualmente em crime.

Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

No momento, o posicionamento jurisprudencial é que a declaração e, não recolhimento, dos valores devidos a título de ICMS, configura o crime de “sonegação fiscal”, previsto no artigo 2º, da Lei 8.137/90. Diz-se no momento, pois a matéria está pautada para enfrentamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, que ratificará ou alterará esse posicionamento.

Mas esse é o tipo de delito que demonstra a ocorrência do ilícito descrito no tipo penal destacado no artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade. Isso porque, por se tratar, aquele (sonegação) de delito praticado mensalmente, ou seja, a cada mês que o tributo não é recolhido, entende-se que novo crime foi praticado e, pelas regras de continuidade delitiva (art. 71, do Código Penal), uma sequencia de meses representa a pratica continuada desse mesmo crime.

Porém, não é raro, ou melhor, é bastante comum que empresários que não tenham recolhido o tributo em seu respectivo vencimento, embora devidamente declarado, respondam não por um processo criminal, mas por 3, 4, 5 ou mais, tendo em vista que o Ministério Púbico, ao oferecer a denúncia, segue unicamente a comunicação recebida da Secretaria Estadual da Fazenda, relativa ao período encaminhada. O papel do MP, no entanto, ao ofertar a denúncia, não pode ser de mero “preenchedor” de lacunas, deflagrando tantos processos quantas notificações recebidas. Cabe ao MP, nesse particular, identificar se já não há processos em curso, aditando as acusações em relação aos novos períodos, ou mesmo questionando as Secretarias Estaduais da Fazenda, quanto a todos os períodos inadimplidos.

A deflagração de diversos processos criminais, principalmente na mesma jurisdição, ainda que futuramente possam ser unificados, importa em ausência de justa causa e permitirá a punição dos agentes responsáveis. Não se trata de coação a agentes públicos, mas sim, da exigência que estes cumpram seus deveres, dentro dos limites legais de atuação.

Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Esse foi o dispositivo que, mesmo sem ainda entrar em vigor, mais notoriedade teve após a publicação da lei, a ponto de juízes deixarem de realizar o procedimento de bloqueio de valores em contas bancárias, apontando deficiências do sistema.

Observa-se, assim, que efetivamente a lei atinge seu propósito, pois apenas com a possibilidade de sanção do procedimento, é que tais magistrados deixaram de utilizar de uma ferramenta que, previamente, já sabiam ser ineficiente.

A ineficiência apontada diz respeito a possibilidade de bloqueio de valores impenhoráveis, como contas de salários, aposentadorias, pensões ou mesmo, de bloqueios em valores muito superiores ao previsto, uma vez que a havendo saldo em mais de uma conta, o bloqueio será realizado em todas elas.

Assim, se por um lado o bloqueio ocorre imediatamente após a ordem para tanto, o desbloqueio tem levado não dias, mas semanas ou até mesmo meses, o que pode causar prejuízos de elevada monta aos titulares de tais contas, pela indisponibilidade dos valores que, excessivamente, foram bloqueados. Nessa linha, é comum e até mesmo uma prática, realizar a ordem de bloqueios próximos as datas de pagamento de salários, medidas essas que, assim como pode implicar no bloqueio do salário do trabalhador, também pode atingir os valores destinados à folha de pagamento, antes da transferência a cada um dos beneficiários.

Desse modo, havendo a previsão de valores que não são passíveis de penhora, a realização do seu bloqueio ou a necessidade de requerer e aguardar sua liberação, causa transtornos e prejuízo financeiro indevidos e que poderão, na forma prevista em lei, implicar na responsabilização penal e, ainda, civil (financeira), do seu infrator.

A Lei de Abuso de Autoridade ainda irá ocupar grande espaço na mídia e nos noticiários. Causará grande revolta e desinformação. Porém, ao longo da história, a sociedade convive com altos e baixos em sua relação com o Estado. De um lado, exigindo proteção e segurança, mediante a contraprestação do pagamento de tributos e de outro, quando essa é praticada com excesso por seus agentes, a definição de freios e limites de atuação.

Assim, a nova legislação não deve ser criminalizada. Deve sim, servir de reflexão quanto aos motivos que levaram a sua discussão e aprovação. Devemos confiar nas autoridades, devemos confiar nos agentes públicos e esses, por sua vez, devem fazer por merecer a confiança depositada, devem ser modelos de conduta, devem, antes de exigir o cumprimento da lei, igualmente as seguirem, caso contrário, apenas escolheremos quais criminosos iremos apoiar e respeitar.

i http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm

ii https://www.conjur.com.br/2019-out-01/juiz-suspende-penhora-online-comarca-causa-lei-abuso

iii https://www.conjur.com.br/2019-out-03/juiza-federal-nega-pedido-bloqueio-ativos-lei-abuso

iv https://www.conjur.com.br/2019-set-27/juiza-cita-lei-abuso-autoridade-libertar-12-pe

v https://www.conjur.com.br/2019-out-05/juiz-advogado-trocam-ameacas-autos-lei-abuso

vi https://www.oantagonista.com/brasil/policiais-tiram-selfies-com-rogerio-157/

vii https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/09/27/lava-jato-usou-provas-ilegais-do-exterior-para-prender-futuros-delatores.htm

viii http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/03/pf-libera-documento-que-mostra-ligacao-entre-lula-e-dilma.html

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