Maristela Hertel[1]

 

RESUMO

Este artigo tem por objetivo abordar os aspectos jurídicos da restrição contida no artigo 1.641, II, do Código Civil, que impõe o regime da separação obrigatória de bens aos que casam após os 60 anos de idade. Este artigo já foi alvo de debate no Congresso Nacional, tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados e, também no Senado, o Projeto de Lei da Câmara nº07/2008 (projeto original nº 108/2007, da Deputada Solange Amaral), que altera o referido inciso, tornando obrigatório o regime de separação de bens no casamento de pessoa maior de 70 anos.

Palavras-chave: Princípio Constitucional. Liberdade. Família. Casamento. Regime de Bens.

 

1. DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL.

Há quase 100 anos (desde o Código Civil de 1916), o Brasil limita, através da legislação civil, o direito de escolha do regime de bens quando um dos nubentes tiver pelo menos 60 anos de idade, conforme redação atual do artigo 1.641, II, do Código Civil, o qual prevê: É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: … II ? da pessoa maior de sessenta anos.

O tema em estudo inspira discussões jurídicas interessantes, tanto é que, através do Projeto de Lei 108, de 2007, a Deputada Federal Solange Amaral encaminhou proposta de alteração da legislação federal, com sugestão de aumento na idade limite para 70 anos de idade, mantendo, infelizmente, este limitador.

Da justificação da aprovação do Projeto de Lei no Senado, extrai-se os seguintes dados históricos e motivação:

?Nos primórdios do Século XX, a expectativa de vida média do brasileiro variava entre 50 e 60 anos de idade, a Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, o que condicionou o legislador a estabelecer que nos casamentos envolvendo cônjuge varão maior de 60 anos e cônjuge virago maior de 50 anos deveria ser observado o Regime da Separação Obrigatória de bens, norma expressa no inciso II, do art.258 daquele Estatuto.(…)

Hoje, no entanto, em pleno Século XXI, essa exigência não mais se justifica, na medida em que se contrapõe às contemporâneas condições de vida usufruídas pelos cidadãos brasileiros, beneficiados pela melhoria das condições de vida urbana e rural, graças aos investimentos realizados em projetos de saúde, saneamento básico, educação, eletrificação e telefonia. Iniciativas que se traduzem em uma expectativa média de vida, caracterizada pela higidez física e mental, superior a 70 anos.

Em virtude dessa realidade, impõe-se seja alterado o inciso II do artigo 1.641, do Código Civil Brasileiro, com o objetivo de adequá-lo a uma nova realidade, para que o Regime Obrigatória da Separação de Bens só seja exigível para pessoa maior de 70 anos.(…)?

Em 2003, através da Lei 10.741, foi promulgado o Estatuto do Idoso, o qual, na esteira da Constituição da República Federativa do Brasil, visa proteção individual, repetindo algumas garantias, em especial:

Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis.

§ 1o O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos:

I ? faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;

II ? opinião e expressão;

III ? crença e culto religioso;

IV ? prática de esportes e de diversões;

V ? participação na vida familiar e comunitária;

VI ? participação na vida política, na forma da lei;

VII ? faculdade de buscar refúgio, auxílio e orientação.

§ 2o O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.

§ 3o É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor

Ora, a efetividade das leis é importante para que elas não se tornem letras mortas, e merecem ter instrumentos adequados para que sejam cumpridas. O Estatuto do Idoso limita a idade mínima para obter esse tratamento diferenciado, mas não a idade máxima como limitador da capacidade da pessoa, como, também, esse critério não faz parte daqueles previstos nos artigos 3º, 4º e 5º do CC/2002[2].

 

2. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE e LIBERDADE

Um dos pilares da democracia é a consagração do direito da liberdade como mandamento constitucional e, de acordo com Paulo Marcio Cruz[3]:

?a liberdade manteve, historicamente, esta finalidade como sua característica essencial. Como conseqüência, desde o princípio da garantia da liberdade implicou a proteção de um conjunto de direitos da pessoa humana, assegurando-lhe um âmbito próprio de autonomia e autodecisão. Isto equivaleu ao reconhecimento de uma esfera própria de cada indivíduo, na qual não se devem imiscuir instâncias estranhas a ela e ante a qual devem deter-se aos poderes do Estado. Esta esfera própria se cria através da definição e proteção de diversos direitos, além da instrumentalização de garantias jurídicas para torná-los eficazes.

Ao lado do princípio da liberdade, está, na mesma gradação valorativa, a preservação da dignidade da pessoa humana, princípio constitucional previsto no artigo 1º, III da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é missão do Estado, cujo conteúdo é, na lição de Alexandre Moraes[4]:

?… um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.?


3. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA MANUTENÇÃO DO LIMITE DE IDADE e a SUMULA 377 do Supremo Tribunal Federal.

Ainda que inicialmente possa parecer um avanço da legislação o aumento do limite de idade de 60 para 70 anos de idade, a questão jurídica, em si, permanece inalterada na medida em que, numa rápida análise, verifica-se que há clara inconstitucionalidade na limitação da capacidade jurídica do nubente. Vários são os princípios constitucionais que podem ser invocados para tutelar essa afronta à Lei Maior, o que já foi destaque de renomados juristas.

Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho[5] defende:

?Mas é inconstitucional a lei quando impede a livre decisão quanto ao regime de bens aos que se casam com mais de 60 anos. Trata-se de uma velharia, que remanesce dos tempos em que se estranhava o casamento com essa idade, sendo então legítima a preocupação da lei em evitar a possibilidade de fraudes. Hoje em dia, a permanência da obrigatoriedade afronta o princípio da dignidade humana.?

Na mesma linha, Pablo Stolze Gagliano[6]:

?Entendemos inconstitucional o dispositivo que impõe o regime de separação legal obrigatória aos maiores de 60 anos, não apenas por afronta ao princípio da razoabilidade (com esta idade, ou mesmo superior, pode-se presidir a República),mas, especialmente, por vulnerar a isonomia constitucional, criando uma limitação incompreensível para tais pessoas. E não se diga que o legislador pretendeu evitar o ?golpe do baú?, pois, se esse fosse o argumento justificador da norma, chegar-se-ia à conclusão de que a lei viciou-se pelo elitismo, apenando a imensa maioria das pessoas que pretendem casar sem esse risco patrimonial.?

Citando Rolf Madaleno, que defende também a inconstitucionalidade desse limitador pela idade:

?Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do seu sexto ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil?

Como se vê, são fortes os argumentos que já defendiam a inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do CC, o qual, ainda que seja modificado, não deixará de infringir garantias constitucionais individuais.

 

CONCLUSÃO

Ao fim deste breve apanhado, há que se destacar, com igual importância que o tema merece, que, de fato, o casamento celebrado sob o regime da separação absoluta de bens pode ser tão lesivo ao patrimônio do cônjuge, quanto se tivesse celebrado o casamento sob o regime da separação voluntária de bens. Isso porque, ainda está em discussão a aplicabilidade da Súmule 377 do Supremo Tribunal Federal, nos termos seguintes: ?no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento?, ou seja, na prática, o regime da separação legal (ou obrigatória) de bens, com aplicação desta súmula, o transforma em comunhão parcial de bens.

Desta forma, atualmente, o cidadão brasileiro com mais de 60 (ou 70 anos como quer o Projeto Lei) que pretender casar-se, não poderá fazê-lo pelo regime da separação convencional de bens com estipulação de pacto antenupcial, e, também, não estará seguro da incidência da Súmula 377 para seu caso, o que gera instabilidade nas relações pessoais e patrimoniais, decorrentes de leis que não atingem ao objetivo principal de alcançar a paz social.

[1] Advogada inscrita na OAB/SC sob nº 14.149. Sócia Fundadora do Escritório de Advocacia Piazera, Hertel, Manske & Pacher Advogados Associados, inscrito na OAB/SC sob nº 1.029. Professora do Centro Universitário de Jaraguá do Sul ? Unerj.

[2] Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I – os menores de dezesseis anos;

II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:

I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;

III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;

IV – os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.

[3] CRUZ, Paulo Marcio. Fundamentos do Direito Constitucional. Curitiba: Juruá, 2008, p.153.

[4] MORAES, Alexandre de . Direitos humanos fundamentais. São Paulo, 2003, p.61.

[5] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil ? família e Sucessões. São Paulo: Saraiva. 3 ed.2010, p.98-99

[6] GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de doação. São Paulo: Saraiva, 2997, p .116.

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