Denise Bartel Bortolini1
Ao abrir uma empresa no Brasil, dentre outras formalidades, deve-se registrar o Contrato Social na Junta Comercial, contendo cláusulas a serem respeitadas, participação dos sócios e o capital social (valor que é investido pelos sócios para que a empresa possa ser aberta, funcionar e gerar lucros), sendo comumente os sócios integralizarem dinheiro, imóveis e veículos.
Com o advento da criptomoeda, tais como: bitcoin, ether e ripple; e seu crescente uso, surge a dúvida da possibilidade de também utilizá-la na integralização de capital social de empresas.
Assim, a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, ligada ao Ministério da Economia, no dia 1°/12/2020, por meio do Ofício Circular SEI n°
4081/2020, esclareceu de que as Juntas Comerciais podem registrar a integralização do capital social com criptomoedas.
Referido ofício expõe a natureza jurídica das criptomoedas como bens incorpóreos (abstratos, sem existência física) com avaliação pecuniária; com base nos entendimentos:
– do Banco Central do Brasil (BCB), que afirmou que “as chamadas moedas virtuais não se confundem com a ‘moeda eletrônica’ de que tratam a Lei 12.865/2013, e sua regulamentação infralegal”. De acordo com o inciso VI do artigo 6° da referida lei, moedas eletrônicas são definidas como “(…) recursos armazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final efetuar transação de pagamento”; portanto, consistem na representação digital de moeda soberana que lhe fornece lastro (e.g., dólar, euro ou real);
– da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), pois “(…) tais ativos virtuais, a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, podem representar valores mobiliários, nos termos do art. 2º da Lei 6.385/1976”; e,
– da Receita Federal, que considera as criptomoedas como ativo financeiro, exigindo sua indicação na declaração do imposto de renda, no campo “outros bens” da ficha de bens e direitos. De acordo com o inciso I do art. 5° da Instrução Normativa RFB nº 1888, de 3 de maio de 2019, considera-se criptoativo:
“(…) a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal”.
Conforme o ofício, é inegável que a própria Receita “considera as criptomoedas como bens incorpóreos, que possuem avaliação pecuniária, são negociáveis e podem ser usados de diversas formas (investimentos, compra de produtos, acessos a serviços etc.).”.
Também o Ministério da Economia esclarece que não há vedação legal para a integralização do capital social com criptomoedas, expondo o inciso III do art. 997 do Código Civil e artigo 7° da Lei n° 6.404/76 (Lei das S.A.), que dispõem o seguinte:
Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: (…)
III – capital da sociedade, expresso em moeda corrente, podendo compreender qualquer espécie de bens, suscetíveis de avaliação pecuniária;
Art. 7º O capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.
Destaca ainda a autonomia empresarial e dever da administração pública de evitar o abuso do poder regulatório, com base no inciso V do art. 3°, e, o inciso VII do art. 4°, ambos da Lei n° 13.874 (Lei da Liberdade Econômica):
Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (…)
V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário;
Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: (…)
VII – introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas;
Por fim, o ofício não impõe formalidades especiais que devam ser respeitadas pelas Juntas Comerciais, bastando manter a atenção às mesmas regras aplicáveis quando da integralização de capital social com bens móveis, de acordo o respectivo tipo societário, limitando-se às Juntas Comerciais ao exame do cumprimento das formalidades, conforme disposto no art. 40, da Lei n° 8.934/1994:
Art. 40. Todo ato, documento ou instrumento apresentado a arquivamento será objeto de exame do cumprimento das formalidades legais pela junta comercial.
§ 1º Verificada a existência de vício insanável, o requerimento será indeferido; quando for sanável, o processo será colocado em exigência.
§ 2º As exigências formuladas pela junta comercial deverão ser cumpridas em até 30 (trinta) dias, contados da data da ciência pelo interessado ou da publicação do despacho.
§ 3º O processo em exigência será entregue completo ao interessado; não devolvido no prazo previsto no parágrafo anterior, será considerado como novo pedido de arquivamento, sujeito ao pagamento dos preços dos serviços correspondentes.
Importante destacar a necessidade de avaliação pecuniária de bens móveis em Sociedades Limitadas e Anônimas, considerando a responsabilidade do subscritor, destacando-se que para Sociedades Anônimas há a exigência de laudo de avaliação
preparado por três peritos ou empresa especializada nomeada em assembleia geral, nos termos do art. 8 da Lei n° 6.404/1976:
Art. 8º A avaliação dos bens será feita por 3 (três) peritos ou por empresa especializada, nomeados em assembleia-geral dos subscritores, convocada pela imprensa e presidida por um dos fundadores, instalando-se em primeira convocação com a presença de subscritores que representem metade, pelo menos, do capital social, e em segunda convocação com qualquer número.
Do ponto de vista formal, o ofício não autoriza e nem veda, apenas caracteriza a criptomoeda como um bem, e por isso, torna possível a sua integralização no capital social de empresas, desde que observadas certas regras.
O ofício trouxe uma sinalização positiva ao mercado e à esperada segurança jurídica sobre o tema, em especial por confirmar que não há restrição legal à operacionalização.
Mesmo sem um movimento concreto do legislativo, há de se observar que o Brasil está cada vez mais atento a legalização das moedas digitais, tendo as criptomoedas conquistado seu espaço para uma regulamentação por diversas instâncias, como o BCB, a CVM, a Receita Federal, e agora, também, o Ministério da Economia.
Porém, destaca-se que a criptomoeda é volátil, e, por consequência, aconselha-se reforçar as normas da empresa, assim como de compliance, evitando o uso indevido das normas societárias. Ainda, em razão das dúvidas e a fim de evitar eventuais entraves, é muito comum a venda da criptomoeda e a integralização do resultado desta venda no capital social da empresa.
Até porque, há quem discorde de que as criptomoedas são bens, não se prestando a compor capital social de empresas, visto que os bens devem ter utilidade e serem de fácil apropriação; que a posse das criptomoedas são por códigos individuais, e, se perdidos, torna-se impossível a sua recuperação; e ainda, que a sua emissão não é por empresa ou governo.
Ao que tudo nos deixa transparecer, a evolução digital com a utilização da criptomoeda é uma realidade que veio para ficar e que vem ganhando espaço no Brasil (mesmo que a curtos passos); contudo, dado o debate ainda considerado inicial, com precariedade na coexistência de instrumentos jurídicos e financeiros, pode gerar discussões, como, por exemplo, o valor da criptomoeda na empresa: de que forma ele deverá ser tratado, em especial depois de uma grande valorização ou desvalorização, pois poderá fazer com que um sócio ou terceiro se sinta prejudicado, gerando conflitos, já que
o capital social serve de referência para limitar a responsabilidade das quotas subscritas e integralizadas pelos sócios.
Enfim, o que o Ministério da Economia fez mediante o Ofício Circular SEI n° 4081/2020 foi, em razão da inexistência de vedação legal e da natureza jurídica da criptomoeda, validar a sua integralização no capital social de empresas, convalidando assim mais uma forma de contribuição para o capital social das sociedades.
REFERÊNCIA
BRASIL. Instrução Normativa RFB n° 1888, de 03 de Maio de 2019. Institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB). Disponível em: < http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=100592>. Acesso em: 21 de jan. 2021.
BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de Dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Brasília: Planalto. Disponível em:
BRASIL. Lei n° 8.934, de 18 de Novembro de 1994. Dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins e dá outras providências. Brasília: Planalto. Disponível em:
BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Planalto. Disponível em:
BRASIL. Lei n° 13.874, de 20 de Setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre(…). Brasília: Planalto. Disponível em:
Brasil. Ofício Circular SEI n° 4081/2020/ME, de 1° de Dezembro de 2020. Brasília. Ministério da Economia. Disponível em:
1Advogada inscrita na OAB/SC sob n° 34.061. Sócia do Escritório de Advocacia Piazera, Hertel, Manske & Pacher Advogados (OAB/SC 1.029). Bacharel em Ciência Contábeis pelo Centro Universitário de Jaraguá do Sul – UNERJ. Especializada em Direito Civil e Processo Civil pela Católica SC – Joinville.